Manifesto HaHaArt Film Festival / 2022
O riso é uma qualidade fundamentalmente humana. Rimo-nos de nós próprios, sozinhos e apesar de nós, e isto tudo outra vez mas com os outros, dos outros e apesar deles. Seja anedota, escárnio, prazer ou desgraça, seja apenas a diversão na perceção de incongruências entre conceito e objeto, como afirma Schopenhauer, o humor assalta-nos de repente e incontrolavelmente.
A comédia é mais do que o “engraçado” ou o “humor”. Dá-nos a ver o escondido à vista de todos, o risível, a desgraça e a alegria de viver; contraria, repete e aumenta; vira as convenções do avesso e desconstrói o hábito para podermos ser estrangeiros por um momento. E nas palavras de Wylie Sypher, “…diz-nos coisas que o drama não é capaz”. Seja pela honestidade, como pelo retrato do absurdo que tantas vezes imita a realidade, na sua simbiose entre a utilização aberta de gags e a narrativa, o cinema de comédia aproxima-se mais da vida real.
A comédia é também partilha, empatia e criação de laços entre o público, tanto pelo retrato honesto da condição humana, como porque o riso com que nos contamina o rosto é um instinto próprio da nossa natureza social, um vestígio dos primórdios da comunicação humana, um espaço popular, comum. No entanto, pelo seu impacto social, é demasiadas vezes relegada exclusivamente ao entretenimento.
O cinema de comédia é raramente reconhecido pelo seu valor estético e artístico. Os críticos ignoram-lhe a importância e, ao privá-lo de atenção, acabam por negar-lhe valor.
O HaHaArt Film Festival pretende afirmar esse valor estético e artístico do cinema de comédia e colocá-lo no mesmo patamar de reconhecimento crítico que os restantes géneros. Queremos celebrar a coragem das obras que se assumem como comédia e resistem ao estatuto de arte menor.
Nós defendemos que a comédia deve ser apreciada pelo seu valor próprio e não pela aproximação a outros géneros, pelo que ensina ou pelo que contesta.
Reconheçamos a ausência de um cânone da comédia e o caráter abstrato do género cinematográfico e celebremo-lo! Aceitemos o seu caráter mutável e camaleónico. Valorizemos a perspetiva que o cinema de comédia oferece e a abordagem emocional com que veste as estruturas narrativas de que se apropria.
Festejemos a incongruência, o imprevisível e a surpresa; o exagero, as contradições e as repetições da loucura metódica do absurdo. Exaltemos a falta de noção e a distração; as expressões faciais desmedidas, os gestos largos, a descoordenação motora e as funções corporais. Abracemos a quebra das convenções técnicas e sociais, a disrupção e a honestidade. Levemos a sério o herói cómico, perdido na existência, inconsciente dos outros, incapaz de se transformar, mas genuíno, convincente e real.
Fazer rir, como diria Woody Allen, ou é fácil ou é impossível. Está dependente de uma abertura constante às possibilidades e riscos da comédia e à exposição das nossas insuficiências; do abraçar da liberdade de expressão; de compreender, aceitar e valorizar os mecanismos da comédia. Recebamos o cinema de comédia de braços abertos. Aí sim, talvez possamos morrer a rir… E vamos consolados!
O HaHaArt Film Festival ambiciona destacar-se num contexto nacional e internacional de festivais de cinema, enquanto evento reivindicador do cinema de comédia. Vamos ver filmes e festejar, em conjunto com os espectadores, o desejo de reacender a chama do que foi outrora um dos géneros mais prestigiados da história do cinema.